O TEMPO - PARTE I |
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Não se sabe
mais o que é filme bom ou ruim
Publicado em: 11/11/2008
Uma incursão na crítica de cinema e a Tarantino
As pessoas me falam muito: "Escreve sobre cinema..." Pois bem -
vamos a isto. Outro dia, recebi o DVD de um filme de Quentin
Tarantino que não tinha visto na penúltima Mostra de Cinema de São
Paulo: "Death Proof" (não sei o nome em português; talvez, "À Prova
de Morte"). O filme é sobre dois grupos de mulheres lindas e
sensuais, perseguidas por um "stuntman" chamado Mike que usa seus
carros "à prova de acidente" para executar as ditas mulheres.
Mais uma vez fiquei chapado. Não tinha gostado do "Kill Bill 1", se
bem que o "KB 2" é muito legal. E fiquei pensando que Tarantino
trabalha no fio da navalha entre o realismo bruto e a comédia
paródica. Sem dúvida, vez por outra ele escorrega para a grossura,
principalmente quando produz os filmes de um medíocre imitador como
Robert Rodriguez.
Mas, quando acerta, é das coisas mais estimulantes das telas de
hoje. Tarantino é um furo no cinema "mainstream" e conseguiu a
proeza de ser um grande sucesso comercial, apesar de suas raízes
experimentais. Assim como o cinema de autor dos anos 60 foi
fetichizado por Hollywood, Tarantino fetichizou o cinema comercial e
fez dele um fato novo.
Com a aceleração do mundo global e bruto, surgiu o que se chama, na
teoria da informação, de "loudness" (volume do sinal) . A cultura do
espetáculo exige que esse nível suba sempre, para não decair o
impacto da novidade. O mercado demanda mais e mais "loudness".
Hollywood teve de dar comida para essa fome, fazendo o grande
simulacro do simulacro. Também, a "loucura do mundo" virou tema das
grandes produções. Coisas como "Matrix", "Sin City" ou "Clube da
Luta", saudados como "novidades" artísticas por críticos sem
referências, fizeram a mímica ridícula de um cinema transgressivo,
anárquico, disfarçando a narrativa linear e obediente. Os filmes
viraram video-games ao contrário, que programam o jogador.
Fotografia extraordinária, montagem frenética e sincopada,
contraluzes infernais, "computer graphics" delirantes, tudo é bom,
só que os filmes são umas drogas. A "novidade" aparece para deixar
tudo exatamente como sempre foi.
Não se sabe mais o que é bom ou ruim. Muita crítica é vista até com
desconfiança, como se fosse coisa "de elite", pelo populismo
eletrônico. Que saudades de André Bazin, de Truffaut, de Pauline
Kael, Paulo Emílio, Moniz Vianna, Ely Azeredo...
Que terrível a ausência de Fellini, Bergman, Antonioni, Welles.
Mas não foi só o cinema que mudou - é impressionante como os
espectadores mudaram nesses anos todos. Estamos domesticados por
convenções de linguagem, de ritmos, pelo amor a uma superficialidade
que se acha "profunda", justamente por ser "efêmera", "volátil",
como quer a "contemporaneidade". O espectador de hoje não pensa; ele
é pensado pelo filme.
Daí a importância de Tarantino, Jarmusch, algum Hal Hartley, David
Lynch. Eles rompem com o segredo mais bem-guardado do cinema
norte-americano: o realismo burguês. Cabe perguntar: por que nos
filmes de Tarantino aquele agregado de bobagens, de diálogos vazios,
a narrativa sem rota, as reações absurdas de personagens são tão
reveladores?
É que através desses detritos Tarantino se defronta com o drama
atual do cinema e da arte : retratar o quê? Com que fim? Para o bem?
Para a moral, para a política? Como fazer um cinema bondoso num
mundo mau? Como construir algo com esperança num beco sem saída? Ao
contrário dos curadores da Bienal, ele não morre no vazio.
Tarantino enfrenta a crise transformando as personagens em "coisas".
Acaba com a psicologia e parte para a absoluta assunção da
superficialidade, que soa como a saudade de algo profundo.
Inconscientemente, ele viu o deserto moral de hoje e sacou que esse
confronto tem de ser em nível da "forma", pois não há mais linguagem
"analógica" para retratar esse universo "digital". A vida em
Tarantino é ilógica, fragmentada, uma comédia violenta, sem
princípio nem fim previsíveis. Para Tarantino não há mundo real;
real para ele são as imagens de sua cabeça de cinéfilo. O cinema
comercial de Hollywood transforma a vida humana em clichés
ridículos. Tarantino só usa os clichês para falar da vida humana.
Ele mostra que somos todos clichés. No entanto, atenção, ele não faz
isso para "demonstrar" nada. Ao ser absolutamente desumano, cínico e
violento, ele expõe nossa ausência de compaixão. Tarantino
desconstrói a violência. Ao adotar o deboche e o cinismo diante de
qualquer sentimento, ele nos faz saudosos de alguma humanidade
perdida. Ao usar uma linguagem solta e louca, ele nos lembra que o
cinema podia ser inventivo e livre da mediocridade. Ao não dizer
nada, ele diz tudo.
A grande influência de Tarantino é Jean-Luc Godard. Isso.
Outro dia revi um filme do mestre: "Alphaville". Meu Deus, como o
tempo passou... Hoje, diante da tecno-ciência, o filme ficou
ingênuo, ilegível para os jovens espectadores. Os ensinamentos de
liberdade que Godard nos trouxe, como um Picasso do cinema, ficaram
esquecidos e se transformaram em "chatura", em "complicação".
Hoje, diante das imagens incessantes, a influência de Godard restou
apenas no videoclipe e no filme de publicidade. Ambos souberam se
alimentar obtusamente desse código descontínuo, viraram-no numa
curiosidade "psicodélica" e tiraram o que de mais profundo havia em
Godard: a recusa do óbvio naturalismo. Assim, transformaram-no no
"pai" de uma falsa liberdade.
Tarantino conseguiu, em alguns filmes, poluir a limpeza do "mainstream"
com a dúvida da linguagem herdada de Godard. Sua empresa de produção
se chama "Bande à Part", uma homenagem a um filme de Jean-Luc. Não
há ideais, finalidades, não há a idéia de "outra realidade" por trás
das paródias de Tarantino.
Só há o prazer de rir da superficialidade da violência, o que
resulta na exposição do problema maior da sociedade norte-americana:
a violência da superficialidade.
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