NOSSAS VISITAS |
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O Mandacaru na
Sala de Jantar
Cansado de política, cronista busca a natureza
Ontem eu comprei um mandacaru. Isso mesmo. Sempre quis ter um cactus
em casa, mas me diziam: “Dá azar...” E eu desistia. Mas ontem passei
num florista quase em frente a meu prédio no Rio e perguntei: “Tem
cactus?” Ele abriu um caminho entre samambaias e tinhorões e
apontou-me o mandacaru. Fiquei fascinado pela planta. Não era um
cactus qualquer; era um personagem do Nordeste, uma famosa planta
brasileira. O leitor já viu um mandacaru? Esse deve ter um metro e
sessenta, reto, com três braços abertos, uma pele verde-oliva entre
plástico e couro-de-lagarto, aberto em gomos sinuosos e todo
cravejado de pequenos espinhos. Em minha casa há um enorme quadro
amarelo como um sol em contra-luz e eu coloquei-o ao lado, de modo a
criar uma paisagem de caatinga na minha sala. Então, feliz com meu
dia de jardineiro, resolvi escrever meu artigo semanal; mas fui
tomado por um grande tédio.
Escrever o quê sobre essa paralisia histórica mundial que finge ser
dinâmica, mas apenas roda no mesmo erro, como um aleijado caído no
chão, girando em volta de si mesmo, entre Bush e Osama, entre Lula e
tucanos, entre rinhas de galo e Marta chorando, Garotinhos,
Rosinhas, irrelevâncias políticas regressistas?
Do fundo da sala, meu mandacaru se postava como uma sentinela, ali,
junto ao quadro ensolarado de Thereza Simões. E ele me despertou a
fome de alguma coisa permanente, que viajasse no tempo dos milênios,
alguma coisa que fosse essencial, nesse mundo caindo em epilepsia
histórica. E resolvi escrever sobre ele.
Fixei-me no mandacaru, aproximando-me como um zoom. Ali estava ele,
há milhões e milhões de anos, imóvel, fora do tempo e da historia,
um observador mudo. Olhei bem a forma do mandacaru. E sua visão foi
me dando um grande alivio, um prazer de estar em contato com um
filho da natureza como eu, companheiros há bilhões de anos, numa
solidariedade discreta, como um guardião me protegendo. Cheguei mais
perto, passando a mão em sua pele lisa e dura como o dorso de
dragão, crivado de espinhos que palpei delicadamente, como a um
bicho manso, mas que pode morder de repente. Minha mão tremia neste
contato solitário entre nós dois, a sós, de madrugada no Rio,
chovendo lá fora, numa conjunção quase amorosa, ele quieto e dócil e
eu curioso como um macaco diante do mistério. Eu temia seu silencio.
Ele é um individuo vivo, sim, tanto que cresce, floresce quando vem
chuva no sertão, tem cardos para o mundo perigoso, mas não toma a
iniciativa. Só espera. Percebo que nele, tudo tem uma razão milenar.
Ele é fruto de razões, esculpido pela misteriosa necessidade de
existir. Vejo que a historia da natureza está toda ali contada entre
seus gomos e espinhos. Quantos milênios se incorporaram na sua
vontade de viver? O verde escuro tem uma razão, as volutas de seu
corpo, seus braços em cruz, apelando para os ares, tudo é um relato
cifrado para mim, narrando os eventos que passaram por milhões de
séculos.
Ao homem que m’o vendeu, perguntei se tinha de regar. Não, ele não
precisa de água, nem de nada. O meu mandacaru não come nem bebe. Só
vive. “Por quê” - penso, metafísico. Para quê? Para nada, nos
ensinou Darwin, abrindo o caminho do “alegre saber” desesperançado
para a filosofia. Nada. Ele é elegante, frugal e forte como um
sertanejo - a comparação inevitável. O mandacaru é um sertanejo de
braços abertos diante do nada, sob o sol, existindo em pleno vazio -
como nós...Só que ele não tem ilusões de sentido, coisa de humanos.
Ele é uma lição sobre nosso destino, uma lição incompreensível, um
segredo insuportável que não podemos encarar. Mas, se ele está fora
da historia – me pergunto - por que então os espinhos? Ele se
defende de quê, há milhões de anos? Ele não se move, mas sabe do
movimento do mundo. O mandacaru está sempre pronto para a ação. Ele
não ataca, mas contra-ataca os bichos que tentaram mascá-lo, dentes
primitivos que interrompiam a ordem que seus genes lhe davam:
“Exista! Viva!”
Por isso ele está sempre “en garde”, com bracinhos curtos, como um
soldado, um espadachim. Ele não venta, não verga, só espera. Ele não
serve para nada, alem de existir. Não, não; suas flores servem sim,
anunciando chuvas. Seus frutinhos são insípidos e ele só serve de
comida em ultimo caso, humilhado em sua pose meio-humana, sendo
esquartejado, cadáver verde, raspado de espinhos para alimentar os
bois na seca.
Mas, aqui, na minha sala ele está longe de seu deserto, ele está
sozinho, parece mais um retirante, desambientado na presença dos
vasos de louças, da mesa de mármore, dos livros, sofás.
Que faz esse retirante, esse pau-de-arara aqui? Ele é um intruso,
mas não parece constrangido em sua dignidade agreste. Ao contrario,
suas presença aviva tudo à sua volta por diferença, tudo fica mais
nítido, porque ele parece coisa, se disfarça até de coisa, mas está
vivo. Vivo. E´ isso que me assombra, à noite, quando chego e o vejo
em sua discreta vigília, me esperando. Dou-lhe um “olá” mudo e gosto
que ele esteja ali, amigo sem nada pedir. A sua volta abre-se um
Nordeste em minha sala, lembrança de vaqueiros, cangaço, Lampião e
Graciliano. Ele me re-liga com uma natureza sem exuberâncias, sem
românticas esperanças ecológicas, mas uma natureza viril, discreta,
me trazendo um sentimento de coragem. E eu não estou mais sozinho.
Ele é o Sr. “Cereus Jamacaru” e eu o Arnaldo. Aprendo com ele a
resistir aos ataques que têm me ferido pela a incompreensão do amor
virado em ódio, com ele aprendo que não há motivo algum para a
esperança, nem para a salvação, mas que viver é uma ordem que
obedecemos e que pode ser um prazer silencioso como ele certamente
tem, debaixo do sol da caatinga ou no canto de minha sala. De noite,
durmo e sei que há dois viventes em casa. Eu e ele. Não sei até
quando, pois ele talvez me sobreviva e fique para sempre em minha
casa, esperando alguém que o leve para um destino novo e que talvez
o assassine.
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