O TEMPO - PARTE III |
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Devemos Beber
Desta Água Suja
Publicado em: 15/07/2008
Outra vez Nelson Rodrigues surge para me orientar
O telefone preto tocou. Era o Nelson Rodrigues. Ele me liga de sua
nuvem de algodão, num céu crivado de estrelas de purpurina. Nelson
se manifesta sempre nas crises - minhas e do país.
- Nelson, que bom que você ligou... estava precisando. O Brasil está
um labirinto de escândalos.
- Ora, rapaz, o país sempre foi assim. Só mudou uma coisa: antes, a
consciência social dos brasileiros era medo da polícia; agora, eles
perderam o medo... Eu sou do tempo do ladrão de galinha, quando só
tinham três ou quatro bandidos no pais... ah, bons tempos... O Zé da
Ilha, o Mineirinho, até os apelidos eram mais doces. Havia uma vaga
simpatia pelos vagabundos. Hoje, não; quem faz sucesso são os
ladrões de casaca... Eles entram na churrascaria e são olhados com
admiração. "Olha lá o gatuno!" - o executivo diz, comendo uma
picanha. E o outro responde, trêmulo de inveja: "É ladrão, mas dá nó
em pingo d’água! Dizem que ele tem até Picassos na cozinha..." E as
santas esposas suspiram ao lado, pensando nas jóias que ganhariam
deles... E ainda se viram para os maridos e lhes atiram na cara:
"Você não é honesto não; você é burro!"
Elas tem razão. Falta de caráter facilita a vida. Ninguém mais é
honesto. A honestidade é uma úlcera que devora as entranhas como uma
víbora do Butantã.
- Mas, não entendo, Nelson, os caras já têm bilhões. O Nahas já
derrubou as bolsas, quebrou o mercado de prata! E quer mais?
- Rapaz, roubar é um vicio secreto; no ladrão de galinha e nas
grandes jogadas, vive-se a doce embriaguez da adrenalina, feito
lança-perfume no Bola Preta.
- E os caras nem se escondem mais na suéter... saem de cabeça
erguida..
- Claro! Ser preso faz parte do jogo. Quem ia conhecer seus feitos
sem a prisão? Eles se orgulham. É um cheque-mate ao contrário, uma
vitória ao avesso. A lei no país é um bálsamo. Eles se exibem feito
Clark Gables, Gregory Pecks, com sorriso de pasta de dentes, se
orgulham... No meu tempo, o canalha se escondia envergonhado pelos
cantos ou então se ocultava atrás da "pose"... Ahhh,.. como era
importante a "pose". A habilidade do grande ladrão era aparentar...
Mesmo com um "jabá" ali, quentinho, no bolso, a pose era
imprescindível.
O larápio antigo tinha perfil de medalha, sorrisos conciliatórios,
oportunismo disfarçado de tolerância democrática. Havia a doce
volúpia de prometer e não cumprir, de trair de cara limpa. Todos
fingiam a tranquila solidez de bons estadistas ou empresários.
O povo babava na gravata e berrava, dando rutilas patadas: "Digam o
que disserem - ele rouba, mas faz". E faziam mesmo, quase nada, mas
faziam. O povo deixava-se roubar, boquiaberto e devoto. Hoje, os
viadutos morrem no ar, as placas de obras dormem no meio das
caatingas. Antes, os rapineiros tinham um estranho amor pelo país
que pilhavam... Sentiam-se no direito da "mão grande"... Eles se
sentiam parte da tradição nacional, misturados com as florestas, com
as cachoeiras... Havia uma simbiose consentida entre eles e o povo.
Eles acreditavam que eram bons para o Brasil. Na mentira, o
essencial é o auto-engano.
Ahhh, que saudades do Lupion, do Ademar, do Lume, tantos... Roubar
era uma arte, rapaz...
- Hoje é um esporte?
- Rapaz, hoje o roubo é em girândolas (desculpe a frase), não há
autores, mas cúmplices; todos são cúmplices. Antes, fulano roubava
sicrano ou beltrano. Hoje, cada bandalheira se espalha como uma
trepadeira de chuchus, é um jogo-da-velha com mil buracos, uma firma
sai de dentro da outra, como cartola de mágico, cada ladrão tem sete
cabeças, de sete cabeças saem outras sete e nunca se consegue matar
a hidra. Ninguém entende nada. O povão treme: afinal, quem roubou
quem? Ninguém entende. O não entendimento faz parte da estratégia...
Pois o próprio Lula não falou que "podem investigar, que o povo nem
sabe o que é dossiê"?
- E como condenar alguém se todo mundo mente?
- Ninguém está mais faltando com a verdade... Isso é coisa antiga...
O canalha de hoje não tem respeito nem pela mentira.
Antes, o sujeito roubava e fugia para o mato. Hoje, foge para o
Congresso. Você viu os deputados do mensalão? Todos querem acabar
com o "foro privilegiado" e cair na Justiça comum, porque sabem que
lá mora a liberdade dos infinitos habeas corpus...
O grande erro daquele Cacciola foi fugir. Se ficasse aqui, não lhe
aconteceria nada... Agora, vai ser caçado como uma ratazana
grávida... pra servir de "exemplo".
Mas a grande novidade na gatunagem contemporânea é o ladrão com
justa causa. Dizem: "Eu roubo porque não vou deixar aí essa grana
para pagar o FMI!"
E também temos os bandidos ideológicos: "Não é roubo não... -
afirmam -, trata-se de "desapropriação" dos capitalistas!".
Você viu outro dia a comemoração dos pelegos sindicalistas no
Congresso, felizes, tudo de gravata, com uísque 30 anos, ameaçando
jornalistas? "Não tem nada demais pegar mais 100 milhões por ano e
não prestar contas ao TCU... - afirmam -, trata-se da vitória dos
sindicatos sobre os burgueses que exploram o povo, pois, como dizia
Lenin, os fins justificam os meios..." É assim... Antigamente, o
comuna verdadeiro, o legitimo, o escocês, tinha orgulho da própria
miséria. Andava esmulambado pelos cantos, filando ponta de cigarro.
Neste novo governo, surgiu o desfalque em nome de Marx..que aliás
está uma fera com o PT aqui em cima...
- E que vai ser de nós, Nelson?
- Isso tudo é muito bom. Está se rompendo a úlcera do país, a
apendicite supurada vai furar...O Código Penal já está
desmoralizado, há juízes jovens e implacáveis, a PF parece Swat de
filme norte-americano. É bom...
O Brasil está assumindo a própria miséria moral. E essa coisa torta,
mentirosa, vagabunda é a nossa verdade. Você não quer saber qual é a
verdade? É isso.
Os brasileiros deviam se abaixar no meio-fio e beber dessa água
suja. Ela é a nossa salvação.
- Nelson... você sempre me traz esperança...
- Deus te abençoe....
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