O TEMPO - PARTE III |
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A América
Nos Explora e Nos Salva
Publicado em: 10/06/2008
Poluição cultural é perigosa como o "efeito estufa"
A política envenena. O cafajestismo brasileiro mata. Agora, me
refugio na grande música, nos livros clássicos, nos filmes
essenciais. Outro dia vi o "Ludwig" e "Violência e Paixão", duas
obras-primas de Luchino Visconti; vi também "Fanny e Alexander", do
Bergman (que foi eleito o melhor filme do século XX, desbancando o
"Cidadão Kane" pela primeira vez) e me lembrei do grande cinema.
E bateu-me a verdade brutal: não sofremos apenas a poluição da
atmosfera; a iconosfera, o universo de signos que nos dirigem e
assolam também é irrespirável. Não dá mais para suportar calado o
lixo a que a indústria cultural nos submete. Depois da morte de
Antonioni, Fellini, tantos... sobrou Godard, que está vivo, mas é
como se não estivesse. Onde estão os grandes artistas?
Onde está a grandeza da arte européia? Não agüento mais a literatura
oscilando entre best-sellers boçais ou uma pseudo-profundidade
"contemporânea", feita de heróis perversos, percorrendo epopéias de
cinismo, pop music, fast sex, desamor, como se a vida fosse um video
game sem esperanças; também não agüento mais os "bons" filmes
norte-americanos fingindo uma reflexão sobre o mundo atual.
As corporações da cultura inventaram uma nova estratégia: nos
convidam a um "pensar" falsamente "crítico", propagando uma
liberdade fetichizada, uma "democracia" de fácil digestão - apenas
uma maneira sutil de se legitimar e nos convencer de que o
capitalismo "democrático" estaria se "auto-analisando". Muitos
filmes chegam a copiar a aparência de "rebeldia": obras
fragmentárias e vertiginosas, mas mantendo a base careta e lógica do
velho esquematismo dramático.
É a mesma coisa que fazem na economia, quando nos incitam ao mercado
aberto, sem abrirem mão de um protecionismo esperto. Parecem
criticar um mundo "ilógico e pós-utópico", mas continuam com o
privilégio exclusivo de um discurso coerente. A América corporativa
é a proprietária da única "grande narrativa" ainda permitida. Os
norte-americanos chamam os europeus de "decadentes e
intelectualizados". "A Europa perdeu a criatividade", dizem.
O fracasso dos europeus seria devido a seu "esnobismo", recusando-se
ao sucesso de mercado. Dizem: "Como são incapazes de se modernizar ,
os europeus se ‘refugiam no passado, são elitistas...’". Para eles,
a causa da crise é que os europeus se recusam a ser
"norte-americanos" - a Europa é "inteligente demais", o que
atrapalha a criação artística do século XXI. E o mais patético é que
a arte européia vive correndo atrás de mais "legibilidade", mais
simplismo, copiando as fórmulas norte-americanas.
A arte "industrial" matou seus últimos laços de amor com aspirações
estéticas sérias. Nos filmes de Hollywood, acabou a época em que os
realizadores respeitavam a arte da Europa. Antes, importavam
diretores da Alemanha, da França, para vitalizar o cinema de Los
Angeles. Assim vieram Billy Wilder, Stroheim, Sternberg, Hitchcock,
Renoir, William Dieterle, Fritz Lang… Até há pouco tempo, alguns
cineastas norte-americanos tinham fascínio por climas "densos", como
eles imaginavam que era a "arte européia".
Geralmente, esses filmes ficavam ridículos, como o "Prêt-a-porter",
de Robert Altman, ou coisas estranhas como "A Insustentável Leveza
do Ser", de Phillip Kaufman. Era patético ver os comedores de
cachorro-quente falando do ser e do nada. Mas até esse louvável
esforço acabou. O mercado perdeu a culpa e os "matrixes" da vida
brilham à solta, nos restando piruetas mentais para descobrir ouro
no "trash", alguma grandeza em John Woo ou Luc Besson.
Assim como a derrota do socialismo criou um mundo sem freios à
injustiça social, chamando pobre de "incompetente" ou "vagabundo",
também na cultura há um grito no ar. Na linha de um "neo-darwinismo
para toda obra", tem muito critico norte-americano que acha a
decadência da arte européia foi provocada pelos subsídios que os
governos dão, pois sem competitividade de mercado, o talento morre.
O neoliberalismo na cultura diz que a culpa é dos fracos. A velha
vanguarda (se ainda tem esse nome) resiste nos guetos desde 1916,
desde o Cabaret Voltaire, desde o dadaísmo, alguns velhos artistas
lutam pela beleza, mas parece que ninguém mais presta atenção nesses
"excluídos". Sumiu no Ocidente o desejo de se atingir transcendência
através da arte. Aliás, o que é "transcendência"?
Sempre houve uma "bronca" norte-americana contra a "profundidade"
cultural do Velho Mundo. Isso foi tema de vários musicais e chegou,
paradoxalmente, a criar obras-primas como "Cantando na Chuva" ou "Bandwagon"
("A Roda da Fortuna"). Não podemos esquecer que a origem popular dos
filmes de Hollywood criou uma estética involuntária que revelou
grandes diretores: Hawks, Fuller, Capra.
Os norte-americanos não sabiam que sua genialidade nascia exatamente
do "superficial". Busby Berkeley é tão importante quanto os Ballets
Russes. Havia um desejo de beleza mesmo no filme comercial antigo.
Hoje, não. Quem filma é o produtor; o diretor é um reles guarda de
trânsito.
O talentosíssimo Quentin Tarantino, que despontou com uma paródia da
violência,"Pulp fiction", virou uma salsicha comercial patrocinando
porcarias "trash" para o picareta mexicano Robert Rodriguez. Sem
dúvida, vivemos uma espantosa revolução horizontal nas informações,
na tecnologia das comunicações, mas há um vazio vertical no
pensamento. Sente-se no ar, em queixumes de intelectuais e artistas,
uma fome de "universais", de novas utopias.
Chegamos ao fundo de um poço reflexivo e é possível que alguma coisa
mude, pelo próprio cansaço da matéria histórica, ao fim desta era
Bush que escangalhou o Ocidente. Pode ser que - depois da fase Osama
- Obama seja o indício de uma renascença. O alto nível deste homem
pode ser a promessa de um novo tempo. A América tem este duplo
condão maravilhoso: nos explora e nos salva.
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