Palestra
proferida na
Ufes em
mesa-redonda no dia 27 de novembro de 2003
na cerimônia de início do segundo semestre letivo de 2003 do
curso de História.
Evento promovido pelo Centro Acadêmico dos Estudantes de
História da Ufes.
Artigo publicado
em Sinais 3, vol. 1, junho/2008.
Vitória: Ufes,
Centro de Ciência Humanas e Naturais, p. 43-70 (ISSN 1981-3988).
“Para quem não tenha a alma pequena e vil,
a experiência da História é de uma grandeza que nos aniquila.”
Henri-Irenée Marrou
(1904-1977)
Saturno devora um
de seus filhos.
Francisco de Goya (1746-1828).
Pierre Victurnier
Vergniaud (1753-1793), um dos chefes dos girondinos,
proferiu uma célebre frase, na Convenção francesa, a propósito do
terror jacobino: “É de se temer que as revoluções, como Saturno,
devorem os próprios filhos”. Vergniaud foi guilhotinado no dia 30 de
outubro de 1793.
Todas as
revoluções devoram seus próprios filhos.
I. No olho do
furacão, ou “tudo bem, mas para que serve?”
“A
história é a reconstituição do pensamento passado
no espírito do historiador.”
Robin George Collingwood
(1889-1943)
No primeiro
semestre de 2003 lecionei para uma turma de História da
Ufes, turma de
primeiro semestre, recém-egressa do vestibular. Rotina de trabalho,
a não ser pelo fato de os alunos terem ficado praticamente todo o
semestre se perguntando para que servia a História. Uma grande crise
de identidade. Inicialmente eu achei aquilo tudo uma tremenda perda
de tempo, mas da surpresa passei ao espanto, pois sempre imaginei
que esse tipo de pergunta era feito ou por gente que não gosta
de História – e esse não deveria ser o caso deles, pois haviam
prestado vestibular para História – ou por gente que não conhece
a História, como o rapazinho do livro de Marc
Bloch (1886-1944), que pergunta ao pai historiador para que
serve a História (BLOCH, 1997: 75).
Da sala de
aula o tema passou para os corredores dos “mexericos da Candinha”. E
como todo bom papo de corredor, a coisa toda cresceu, provavelmente
com as distorções de “quem conta um conto, aumenta um ponto”. Então,
o Centro Acadêmico dos estudantes de História me convidou
para dar a palestra de abertura do semestre seguinte, para a nova
turma noturna de calouros. Muitos não haviam gostado de minha
resposta (que pragmaticamente a História não servia para nada, não
tinha um uso funcional, era uma forma de reflexão que deveria causar
prazer e fruição ao historiador, além de proporcionar-lhe
Sabedoria). Alguns dos alunos (de outros períodos,
especialmente) queriam me pôr à prova, contestar, criticar
gratuitamente, nessa postura típica da juventude dos 20 (por acaso
acham que eu não lembro da minha?).
Bem, na noite
de 27 de novembro de 2003, dividi a mesa com a Professora
Jussara Luzia Leite (do
Depto. de Didática e Prática de Ensino da Ufes)
e com o Professor
Luiz Antonio Gomes Pinto (contratado do
Depto.
de História). O título da mesa era exatamente esse:
“Para que serve a História?”. Seriam três depoimentos, logicamente
distintos – o convite fora feito aos professores exatamente pelos
alunos saberem que havia uma razoável diferença teórica/metodológica
entre os três, ou pelo menos entre um e outros dois – e todos amam
ver o circo pegando fogo...
Meu espanto
aumentou ainda mais. Eu teria agora que responder a essa pergunta
dentro do próprio curso de História! Bem, o motivo dessa redação é
esse mesmo: deixar registrada minha perplexidade com essa atual
“crise” alheia (não minha) e dar meu depoimento do que disse,
aprofundando um pouco os temas dos quais tratei naquela noite, o que
é a História e para que ela serve.
II. A História em
casa:
Asterix, dinossauros e a
Universidade Santa Úrsula
(1981-1982)
“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos
não é historiador.”
Fernand Braudel
(1902-1985)
Minha mulher
não gosta de História. Nunca leu um livro de um historiador – muito
menos os meus (“textos de historiadores são chatos!”). De vez em
quando me perguntava para que servia a História, e principalmente
por que eu gastava tanto tempo (e dinheiro) comprando e lendo tantos
livros, muitos sobre o mesmo assunto, ocupando tanto espaço em casa
(hoje ela não me pergunta mais, afinal pagamos nossas contas graças
à História...). Divertia-me muito ver uma opinião tão diferente da
minha. Sempre gostei de conversar com pessoas que tinham idéias
diferentes. Isso me fazia crescer – e caso não mudasse, fortalecia
minhas próprias idéias. Ao mesmo tempo ela, sem o perceber, fazia-me
refletir regularmente sobre esse meu ofício, esse meu imenso e
inesgotável prazer que se tornou profissão e meio de vida. Eu sempre
respondia a ela que eu gostava de História, e que a gente deve
sempre fazer o que gosta. Sempre. E ela não se convencia. Claro, não
gosta.
Quando eu era
professor do que se chama hoje Ensino Fundamental, muitas
vezes tinha que responder a essa pergunta para as crianças.
Costumava brincar com os alunos da quinta série – a primeira série
que tinha um professor específico para a disciplina História –
devolvendo outra pergunta: “Por que vocês gostam tanto dos
dinossauros?” Como eu, eles não sabiam a resposta, apenas diziam que
gostavam dos dinossauros, que compravam aqueles bonecos e brincavam
com eles. Claro, quando a gente gosta de algo, não pergunta porquê
gosta, apenas gosta (a menos que a pessoa seja uma grande
chata e fique regularmente questionando o que ama).
E mais: eles
também gostavam – e muito – dos temas da História Medieval, das
histórias do Rei Artur (com seus cavaleiros e suas guerras, castelos
e monstros horripilantes), de Robin Hood, das bruxas, das fadas e
feiticeiras, das guerras e das cruzadas, dos torneios dos cavaleiros
(entre elas, as crianças, como os pós-adolescentes em crise, são
muito cruéis), das pirâmides e dos camelos, enfim, de tudo o que era
diferente de seus ambientes.
Atualmente
leio à noite as histórias de Asterix & Obelix para meus
filhos. Tenho a coleção completa dessa história em quadrinhos
francesa desde os meus quinze anos. E eles adoram, seus olhos ficam
vivos e brilhantes como pérolas. Eu faço isso não só para exercitar
a prática de contar histórias e deleitar uma “audiência” – acredito
que o historiador, antes de tudo, tem que saber muito bem contar
uma história – mas também para que eles um dia tenham o gosto pela
leitura, para que eles aprendam palavras novas, para que eles saibam
a existência de lugares diferentes, de pessoas diferentes, para que
eles percebam que existe o tempo, que ele é muito, muito extenso e
faz com que muitas coisas mudem e outras permaneçam ou sejam
parecidas com algumas outras que ficaram para trás.
Por fim, leio
para eles para que, no futuro, eles não me perguntem para que serve
a História! Já chega a minha mulher e meia dúzia de ex-alunos em
crise existencial. Meus filhos saberão que, no mínimo, ela serve
para divertir. E muito. Surpreso leitor? Não deveria, pois
desde Marc Bloch sabemos que a história,
no mínimo, diverte (BLOCH, 1997: 77). E essa é uma importantíssima
função social: dar prazer, divertir, agradar, satisfazer, fruir,
causar deleite. Claro, é óbvio: quando estamos felizes e satisfeitos
com o que fazemos, somos mais generosos, mais compreensivos, mais
afetuosos, enfim, mais humanos.
Quando
ingressei na Universidade, em 1981, na Universidade Santa Úrsula,
me disseram que estávamos estudando História para depois
conscientizar as massas e fazer a revolução socialista. Eu pensava
que havia ingressado no curso – expressamente contra a vontade de
minha família – porque gostava de História e de saber o que
aconteceu no passado da humanidade. Mas naquele ambiente acadêmico
não havia espaço para esse tipo de sentimento, para essa maneira de
ver o passado – como ainda não há, infelizmente. Ademais, eu também
não podia ser feliz: estudar a História para conhecer o passado não
era suficiente, eu devia estar insatisfeito com a realidade atual
para querer transformá-la.
Em resumo: eu
devia ser um chato. Além de muitas outras coisas que depois descobri
serem mentiras (como, por exemplo, que a terrível Revolução
cultural chinesa foi uma coisa maravilhosa e trouxe um grande
avanço tecnológico para a China), disseram também que eu deveria ler
um tipo muito específico de livros, pois outros eram alienantes.
Patrulhamento ideológico, como certa vez disse
Glauber Rocha (1938-1981).
Por exemplo,
eu fui “disciplinado” a não ler de maneira nenhuma a obra
Casa Grande & Senzala, já que Gilberto
Freire (1900-1987) havia defendido a ditadura militar no
Brasil e dizia no livro que não havia racismo no Brasil. Eu deveria
ler Florestan Fernandes (1920-1995) – o
máximo que consegui foi ler seu livro A função social da guerra
na sociedade tupinambá!
Claro que como
bom rebelde “pós-aborrescente”, a primeira coisa que fiz foi devorar
secretamente Casa Grande & Senzala. E eu simplesmente
adorei o livro (e ainda hoje o considero um dos grandes livros sobre
a formação do Brasil). Apesar de seu autor ter apoiado a ditadura,
eu percebi que a propaganda contra o livro era mentirosa – e que seu
autor não disse que não havia racismo no Brasil. Assim fiquei
vacinado contra essas centenas de “leitores de orelha” e de resenhas
de livros e que nunca leram um livro até o fim. Isso em 1981 (hoje
os “leitores de orelha” cresceram assustadoramente e já entraram na
universidade).
III. Sete perguntas, sete respostas e suas
contestações
“O marxismo é o ópio dos intelectuais.”
Raymond Aron
(1905-1983)
Mas volto à
pergunta da crise. Ela deve ser respondida no âmbito da
legitimidade. E ela é uma pergunta capciosa, pois antes da resposta
ela pressupõe que existe uma multiplicidade de respostas, o que
quase elimina a possibilidade da “história ciência”, ou da
“história, ciência em construção” do Professor
Ciro Cardoso.
Um consolo:
como eu, há três anos atrás o (grande) historiador (e medievalista)
português José Mattoso
foi convidado para proferir uma palestra, e também no curso de
História da
Universidade de Lisboa (MATTOSO, 2000). Coincidência. E
embora ele tenha oferecido uma variada gama de explicações, a
maioria bastante plausível e satisfatória, ainda hoje os estudantes
portugueses de História continuam se perguntando para que serve o
curso. Ou seja, a crise continua. Pelo menos para os lusitanos e
brasileiros, para os chatos que não gostam de História ou para os
que não a conhecem.
Então,
tentarei responder a essa pergunta, discorrendo um pouco sobre o que
disse naquela noite da palestra. Para isso, tratarei antes de alguns
aspectos que dizem respeito àquele questionamento.
A História, suas teorias e seus métodos, dividem os historiadores, e
muito. Basicamente, sete perguntas, ou melhor, sete respostas para
sete perguntas criam esse impasse. As perguntas são essas:
1) Que assuntos a História
deve tratar?
2) A História deve
colocar o acento na continuidade ou nas rupturas?
3) A História deve se
preocupar mais com os indivíduos que possuem poder e
autoridade ou
com o conjunto da população?
4) A História é uma
projeção de preocupações ideológicas atuais no passado ou
um
conhecimento através de documentos?
5) A História é uma
forma literária, uma narrativa ou uma ciência que
estabelece,
descreve e explica?
6) Quais as relações
da História com as outras disciplinas? Ela deve ser
interdisciplinar?
7) A História deve
limitar-se à cultura, à política e à economia ou incluir e
englobar
todos os aspectos da vida humana, como a alimentação, o ambiente,
o
clima, o vestuário? (LE GOFF, 1994: 164-165).
Dependendo da
resposta, o historiador é “classificado” de uma forma, é
“enquadrado” em um grupo, e quase que excluído do outro.
Assim, para
ter uma idéia do que estava me metendo ao aceitar o convite do C.A.
– e também para me posicionar melhor – interroguei cinco colegas do
Departamento de História da Ufes e uma grande amiga,
historiadora do
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas
da Argentina com a mesma pergunta que eu teria que responder na
palestra. Leiam as repostas abaixo (que transcrevo com a permissão
de todos, naturalmente):
1) “A História serve para
justificar visões de mundo” – Prof. Dr.
André Ricardo Valle Vasco Pereira
(Ufes)
2) “Com a História
entende-se o passado, compreende-se o presente e faz-se projeções
para o futuro” – Prof. Dr.
Sebastião Pimentel Franco
(Ufes)
3) “A História serve
para se entender o presente” – Prof. Ms.
Josemar Machado de
Oliveira (Ufes)
4) “A História é uma
das formas de reflexão da vida social, pois nossa sociedade é
auto-reflexiva” – Prof. Dr.
Estilaque Ferreira dos
Santos (Ufes)
5) “A História serve
para se entender o desenvolvimento das sociedades e dos valores da
humanidade; com ela o historiador constrói e divulga conceitos e
ideologias com o intuito de promover uma melhora na vida das
pessoas” – Profa. Dra.
Maria da Penha Smarzaro Siqueira (Ufes)
6) “A História serve
para que nos divirtamos lendo uma novela que aconteceu na realidade”
– Profa. Dra. Patricia
Grau-Dieckmann (Consejo
Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas da
Argentina).
Parece claro
que de forma alguma existe consenso. E se você, caro leitor, fizer
uma pesquisa semelhante com os professores que conhece, verá que
dificilmente encontrará uma opinião majoritária. E isso é o normal.
Na maior parte dos casos, perceberá que o que existe é uma grande e
profunda divergência, divergência essa que impossibilita tornar
nosso ofício uma “ciência”. Duvida? Junte cinco historiadores numa
mesa...
Portanto,
deixo logo claro que não acredito mais nessa história de
“história-ciência” – talvez a noção de “ciência inexata” de
Gadamer (1900–2002) seja mais
propícia para a História (GADAMER, 1998: 24). Talvez.
De qualquer
modo, Carlo Ginzburg
está certo:
A História é como a Química
antes de Boyle ou a Matemática antes de Euclides, ou seja, não
houve ainda um Galileu ou Newton que criasse um paradigma da
História, e talvez jamais haja (...)
Os historiadores podem dizer muitas coisas distintas e
conflitantes, e ainda serem considerados profissionais da
história (PALLARES-BURKE, 2000: 294).
Também não
creio que a história deva servir para justificar visões de mundo,
como afirma o Prof. André
Ricardo (Ufes)
– embora alguns façam esse uso. No entanto, essa não é sua função
primeira, nem a melhor, nem a mais nobre utilização que podemos
fazer dela, como comentarei abaixo.
Seja como for,
mesmo que se possa compreender o presente com a História,
definitivamente ela não serve para fazermos projeções para o futuro,
como desafortunadamente pensa o Prof.
Sebastião Pimentel Franco
(Ufes). Não
somos futurólogos! Aliás, essa é a maior ofensa que um
historiador pode receber: “Nós (os historiadores) nos
orgulhamos de não tentar predizer o futuro, assim como nossos
colegas economistas, sociólogos e cientistas políticos tentam fazer”
(GADDIS, 2003: 16), ou ainda, “o historiador não tem o dom da
profecia, e sabe-o” (COLLINGWOOD, 1989: 274).
Darei um
exemplo muito simples e conhecido para provar isso: o próprio
Marx
(1818-1883), talvez o pensador mais querido nos círculos de
historiadores em nosso país! Acreditando ter descoberto a chave para
o processo histórico, o famoso materialismo histórico e sua
“luta de classes” como “motor”, ele percebeu o seguinte: o progresso
material estava aumentando a pobreza, e cada vez mais pessoas
trabalhavam para um número cada vez menor de capitalistas.
Em uma famosa
passagem do
Manifesto comunista (1848), ele faz essa dicotomia social:
“A sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos inimigos,
em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o
proletariado” (Marx
& Engels).
Em uma carta
escrita a Weydemeyer
(1818–1866) datada do dia 05 de março de 1852,
Marx é ainda mais claro:
Não me cabe o mérito de ter
descoberto nem a existência das classes na sociedade moderna,
nem a luta de classes entre si (...) O que fiz de novo foi:
1) demonstrar que
a existência das classes só está ligada a fases de determinado
desenvolvimento histórico da produção;
2) que a luta de
classes CONDUZ NECESSARIAMENTE à ditadura do
proletariado e
3) que essa ditadura constitui apenas a
transição para a abolição de todas as classes.
(o grifo é meu) (em Karl Marx, F. Engels, Études
Philosophiques, Paris, Éd. Sociales, 1951, p. 125).
Na
Ideologia Alemã (1845-1846),
Marx chega a ser idílico ao pintar a sociedade
comunista futura: “...na sociedade comunista, onde cada um não tem
atividade exclusiva, mas pode aperfeiçoar-se no ramo que lhe apraz,
a sociedade regula a produção geral, dando-me assim a possibilidade
de hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à
tarde, criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo
meu desejo, sem jamais tornar-me caçador, pescador, pastor ou
crítico” (MARX e ENGELS, 1986: 47).
Para se chegar
a esse paraíso terrenal, Marx
previu que inexoravelmente (ou, como dizem, “em última
instância”, verborragia engeliana horrível, mas adorada e utilizada
pelos marxistas tupiniquins) o sistema capitalista entraria em
colapso, pois a consciência da classe operária aumentaria
proporcionalmente à industrialização e ao aumento do número de
proletários, fazendo com que eles se “libertassem de seus grilhões”.
Bastava acelerar esse processo, e essa era a função da revolução,
revolução que logicamente aconteceria no país mais industrializado,
no país com maior número de proletários conscientes de sua condição
vil, conseqüentemente no país com a consciência de classe mais
desenvolvida.
Um mais um
igual a dois. Bingo! Eureka! A fórmula, uma perfeita
equação matemática aplicada às sociedades humanas, estava fadada a
acontecer. Era o curso inexorável da História, o “trem”, o
“bonde” da História. Os fatos apresentados por
Marx estavam corretos e seu
pensamento também era lógico. Portanto, ele estava certo, aquilo
iria acontecer (veja, especialmente, o “Prefácio” à
Contribuição à crítica da economia política, de 1859).
Certo? Não!
Curiosamente, apesar de suas premissas lógicas, ele errou em
tudo que previu: a classe dos operários (e dos trabalhadores em
geral) teve suas condições lentamente melhoradas, não pioradas; o
número de operários das fábricas diminuiu em relação ao conjunto da
sociedade (e hoje ainda continua diminuindo); o capitalismo não
entrou em colapso, pelo contrário, desenvolveu-se cada vez mais
(quem entrou em colapso foi o socialismo real dos países
comunistas, com as massas saindo às ruas pedindo o fim dos
regimes!!). E a revolução aconteceu justamente no país mais atrasado
industrialmente, não no mais desenvolvido, contrariando TOTALMENTE
as suas previsões!
Para piorar
ainda mais a (im)previsibilidade marxista, a idéia que o Estado
desapareceria após a revolução, que esta seria uma etapa para o
futuro e maravilhoso comunismo, foi também inteiramente desmentida
pelos fatos: o estado socialista cresceu, cresceu, cresceu tanto que
abarcou toda a vida social, transformando-se em um monstro
controlador e devorador de gentes (primeiro dos próprios
revolucionários), com seus campos de concentração (os Gulags)
de trabalho escravo e sua macabra matemática de milhões e milhões de
mortos – muito maior que o Holocausto nazista (APPLEBAUM,
2004).
Marx errou em todas as
suas previsões simplesmente porque a História não é uma equação
matemática, e os homens possuem um grau de imprevisibilidade tão
grande que muitas vezes tomam decisões que contrariam a lógica. “A
História, ignorando Marx,
seguiu a sua própria lógica misteriosa e o seu próprio caminho” (TUCHMANN,
1991: 194). Ademais, não se estuda História, como disse, para se
prever o futuro: o próprio leitmotiv do materialismo
histórico é, portanto, anti-histórico por excelência.
Por sua vez, o
Prof. Josemar
Machado (Ufes)
defende que a História serve para se entender o presente. Ok, mas se
a limitarmos a essa função, teremos uma boa parte do passado jogada
no lixo. Explico: o que as pirâmides do Egito e sua monarquia
explicam da sociedade capixaba? E os samurais? E os bárbaros
germânicos do século V? Nada. Caso fosse assim, deveríamos nos
interessar (e pesquisar) somente nossa história local, regional. No
entanto, percebo que o interesse humano em relação ao passado é
vasto e infinito (não citei a adoração das crianças pelos
dinossauros?).
O próprio
Professor
Josemar é um bom exemplo disso: em seu doutorado (na
USP) ele estuda a
Revolução Francesa! Mas o que essa revolução explica a respeito de
sua cidade, de sua cultura capixaba, do Espírito Santo, ou mesmo do
Brasil? Nada, literalmente nada. Sequer tivemos revolução liberal em
nosso país... Portanto, estudar a Revolução Francesa no Espírito
Santo não “serve” para nada... Ele estuda a Revolução Francesa
porque gosta do tema (provavelmente).
Ademais,
escolher um tema para pesquisa só porque é de “nossa época” ou de
“nossa região” traduz uma visão míope e provinciana da História.
Carlo Ginzburg se opõe
firmemente a essa forma de ver a História, que ele considera a de um
“historiador engajado”. Para ele – e concordo integralmente com sua
posição – a História pode nos despertar para a percepção de culturas
diferentes, de que as pessoas podem ser diferentes, e assim
contribuir para ampliar nossa imaginação; disso “decorreria
uma atitude menos provinciana em relação ao passado e ao presente” (PALLARES-BURKE,
2000: 299).
Ou seja, a
História “serve” para atenuarmos nosso provincianismo ou, como se
referiu Jacques Le Goff
à Idade Média, combater nossa “mentalidade de capela” e nosso
“espírito de campanário” (LE GOFF, 1983: 57). Em outras palavras,
para sermos menos caipiras e provincianos! Por isso, é muito bom que
o (capixaba) Prof.
Josemar tenha escolhido um tema da Revolução
Francesa para sua tese de doutorado, certamente algo muito mais
relevante para a história da Humanidade que analisar a chegada de
Vasco Fernandes Coutinho
(c. 1495-1561) às praias capixabas ou a resistência de
Maria Ortiz (1603-1646) frente
aos holandeses!
Ao contrário
da definição do Prof.
Estilaque Ferreira dos
Santos (Ufes),
acredito que nossa sociedade cada vez mais é menos
reflexiva, cada vez possui menos capacidade de refletir, de entender
e de discutir a realidade. Isso acontece por se tratar de uma
sociedade de consumo, de massa, de gente que cai no apelo fácil
da leitura superficial, quando não da força da televisão,
passatempos fúteis alçados à categoria de cultura. A crise pela qual
passam as ciências sociais e o questionamento acerca da função da
História em um curso de História são provas contundentes disso.
As pessoas
cada vez mais desejam saber “para que serve” aquele conhecimento
adquirido, cada vez mais elas querem ter uma explicação pragmática e
funcional, talvez para se sentirem tranqüilas e inseridas nesse
contexto cultural de consumo imediato e poderem explicar aos seus o
motivo de sua escolha. Cada vez mais há menos espaço para os que,
intelectualmente falando, estão fora do sistema.
Através da
História entendemos o desenvolvimento das sociedades e dos valores
da humanidade sim, como afirma a Profa.
Maria da Penha Smarzaro Siqueira
(Ufes), mas não
para divulgar “ideologias” e promover uma melhora na vida das
pessoas (parece que seria melhor trocar a palavra “ideologias” por
“marxismo”, ou “marxismos”). E se por “melhora” entendo “melhora da
vida material”, aí então a coisa fica ainda mais contraditória, pois
o passado humano não é mais desenvolvido tecnologicamente que o
presente, pelo contrário.
Por exemplo,
não estudamos a presença portuguesa no Brasil do século XVII para
promover uma melhora na vida das pessoas hoje. É um contra-senso!
Para promovermos uma melhora social hoje não precisamos estudar
História, devemos é estar atentos à utilização dos gastos públicos
por parte das autoridades eleitas, aos desvios e roubos cometidos
por pessoas que deveriam se preocupar com a coisa pública, à
morosidade da Justiça, às obras de saneamento em nosso país, e por
aí vai.
Além disso, se
estudamos o passado para divulgar uma ideologia, como infelizmente
defende a professora Maria
da Penha, esse passado fica à mercê de nosso programa
político (no caso, do programa político dela, comunista). E
aprendemos que muitos, como os comunistas, já usaram a História para
seus fins propagandísticos, omitindo e distorcendo informações sobre
o passado para que ele se encaixasse em seu modelo explicativo. No
caso da História, as omissões de Eric Hobsbawm
acerca dos horrores do marxismo-leninismo soviético são o melhor
exemplo de história-propaganda que se pode ter. O passado
não tem relação (nem culpa) com nossas propostas utópicas de futuro.
Para termos uma proposta de futuro, não é preciso conhecer o
passado. Basta sonhar.
IV. Um tal
Mário, Einstein e a invenção da História
“A História é atualmente revista ou inventada
por gente que não deseja o passado real,
mas somente um passado que sirva aos seus objetivos.
Estamos hoje na grande época da
mitologia histórica.”
Eric Hobsbawm
(1917- )
Esse ponto é
muito interessante, e posso inclusive dar um bom exemplo da
equivocada utilização do passado para justificar uma visão de mundo.
Nesse mesmo encontro do C.A., em uma das idéias que desenvolvi
durante minha palestra afirmei que os cientistas – e os bons
historiadores – buscam o conhecimento pela fruição: o
prazer de descobrir, de entender, de compreender.
Para isso,
citei uma série de historiadores que já afirmaram o mesmo, e com
muito maior brilho do que eu. Prosseguindo na idéia, dei o exemplo
dos físicos, que quando pesquisam o átomo ou os movimentos das
moléculas o fazem pela busca do conhecimento em si, porque todo
conhecimento é bom e vale a pena ser buscado.
Quando os
organizadores iniciaram a segunda parte daquele evento, de
perguntas, um graduando de História de nome
Mário Antunes, pretensioso,
pedante, incisivo, beirando a grosseria, foi ao microfone e se disse
“bastante surpreso” (!) com minha “colocação simplista” a respeito
da importância da fruição e do conhecimento em si. Além de discordar
de tudo que eu tinha dito, ele disse ter ficado muito satisfeito por
eu ter justamente citado os físicos, pois tinha certeza
que Einstein
(1879-1955) havia se arrependido amargamente de ter desenvolvido sua
teoria quando os americanos lançaram as bombas atômicas em Hiroshima
e Nagasaki (1945).
Portanto, em
sua idéia, o conhecimento não era bom em si, o que importava era o
que fazíamos com ele, qual a sua utilização política.
Bem, em
História devemos ter o hábito de checar as informações e ter
certeza antes de falar (aliás, em todo debate honesto
deve-se ter essa premissa). Na hora, confesso que fiquei em dúvida
com a afirmação do resoluto aluno, pois tinha lido um livro de
Einstein (uma
coletânea de seus escritos) há alguns anos atrás em que ele não
dizia nada disso, mas eu poderia me equivocar e fazer uma citação de
memória.
Embora esse
detalhe não afete em nada a essência do que eu disse – na ocasião
afirmei que Einstein
não tinha culpa de nada, pelo contrário, a energia nuclear tem
muitos usos benéficos para a Humanidade – gostaria de corrigir o
decidido porém desatento e mal-educado aluno, para que seu
desconhecimento não seja tido como verdade:
Albert Einstein, ao contrário
do que disse o equivocadíssimo Mário,
não se arrependeu do que estudou. Pelo contrário, no caso das bombas
atômicas, Einstein
DEFENDEU a atitude norte-americana de lançá-las no
Japão. Cito textualmente as palavras do físico:
Convém não esquecermos que a
bomba atômica foi feita neste país (EUA) como uma medida
preventiva; o objetivo era evitar seu uso pelos alemães, caso
eles a descobrissem.
O bombardeio de núcleos civis foi iniciado pelos alemães e
adotado pelos japoneses. Os aliados deram o troco – como se
constatou, com maior eficácia – e estavam moralmente
justificados para fazê-lo (o grifo é meu). (EINSTEIN, 1994:
200-201).
E atenção:
esse texto foi escrito por Einstein
em 1947, dois anos depois das bombas terem sido jogadas no
Japão!
Além disso,
devo fazer outra correção de conteúdo para o pobre rapaz: a
teoria da relatividade, tese que tornou
Einstein famoso no mundo
inteiro, serve para explicar sistemas mecânicos celestes, e não
sistemas quânticos (que são os que explicam sistemas atômicos).
Portanto, Einstein
não é o pai da bomba atômica: seus estudos sobre o efeito
foto-elétrico fazem parte de uma cadeia maior de estudos que,
reunidos posteriormente por outros físicos, deram ensejo à produção
atômica.
Moral da
história: o bom historiador deve sempre estar seguro das
informações factuais que utiliza. Assim é nosso ofício: conhecer e
compreender o passado da humanidade, e não reinventá-lo de acordo
com nossas convicções pessoais ou políticas, e menos ainda
distorcê-lo apenas para criar uma discordância vazia para se
auto-afirmar e/ou provocar um tolo debate, como fez o tal aluno
Mário Antunes. Esse é
o perigo de se usar a História para divulgar ideologias e visões de
mundo: quem age assim tem a tendência de ser tendencioso, e
distorcer o passado a seu bel-prazer para provar suas idéias.
Por fim, resta
a história como conhecimento, como algo que diverte,
frase da querida Professora
Patricia Grau-Dieckmann
(Consejo
Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas da
Argentina). Talvez esse seja o depoimento no qual eu melhor me
encaixe. O caráter lúdico do conhecimento é um dos
fundamentos mais sólidos e permanentes da atividade intelectual,
como bem disse o Professor Pedro Paulo
Funari (UNICAMP)
em um de seus livros sobre o Mundo Antigo:
Meu objeto, neste trabalho, é
a História como um prazer, como um meio agradável e útil de usar
o tempo livre. A preocupação com a fruição da História não deve
ser subestimada, pois um dos fundamentos da atividade
intelectual consiste no prazer derivado do conhecimento (FUNARI,
2003: 13).
Ao lado de
Pedro Funari nessa
mesma perspectiva estão dois grandes historiadores (e
medievalistas). Primeiro Marc Bloch:
Mesmo que julgássemos a
história incapaz de outros serviços, seria certamente possível
alegar em seu favor que ela distrai (...) Pessoalmente (..) a
história sempre me divertiu muito (BLOCH, 1997: 77)
E
Georges Duby
(1919-1996):
Para que serve a história? A
história é, antes de tudo, um divertimento: o historiador sempre
escreveu por prazer e para dar prazer aos outros. Mas também é
verdade que a história sempre desempenhou uma função ideológica,
que foi variando ao longo dos tempos (DUBY, s/d: 16).
Com esses
grandes historiadores me alinho. Estudei e estudo História porque
sempre amei a História, amei e amo o conhecimento e a compreensão do
passado humano, como e porque as pessoas fizeram o que fizeram,
foram o que foram, pensaram o que pensaram. Esse conhecimento
não tem nenhuma utilidade prática ou funcional para o nosso
dia-a-dia. Esse conhecimento é simplesmente bom em si, porque é
bom conhecer as coisas, é bom conhecer o que aconteceu, o passado,
independente de sua utilização prática atual.
Hugo de São Vítor (1096-1141) possui uma
importantíssima passagem em sua obra Didascálicon (1127)
que exprime com maestria e beleza o sentido da Educação e da atitude
do estudante com o estudo. Ela “serve” não só para o
Mário, mas para todos que se aventuram
na seara do conhecimento humano, da História – e merece ser citada
na íntegra:
O começo da disciplina moral
é a humildade, da qual existem muitos ensinamentos, três dos
quais interessam mais ao estudante: 1) não reputar de
pouco valor nenhuma ciência e nenhum escrito; 2) não
ter vergonha de aprender de qualquer um; 3) não desprezar os
outros depois de ter alcançado o saber.
Muitos ficam decepcionados porque querem parecer sábios antes do
tempo. Por esta razão, explodem numa intumescência de
arrogância, começam a fingir aquilo que não são e a
envergonhar-se daquilo que são, e tanto mais se afastam
da Sabedoria quanto mais se preocupam não em serem sábios, mas
em serem considerados tais.
Conheci muitas pessoas assim, as quais, mesmo
necessitando ainda dos conhecimentos básicos, se dignam
interessar-se somente das coisas sublimes, e acham que
se tornaram grandes apenas por ter lido os escritos ou ouvido as
palavras dos grandes e dos sábios. Quanto a mim, porém, oxalá
ninguém me conheça e eu conheça tudo.
O estudante prudente, portanto, ouve todos com prazer,
lê tudo, não despreza escrito algum, pessoa alguma, doutrina
alguma. Pede indiferentemente de todos aquilo que vê estar-lhe
faltando, nem leva em conta quanto sabe, mas o quanto ignora.
Aprenda de todos com prazer aquilo que você não conhece, porque
a humildade pode tornar comum para você aquilo que a natureza
fez próprio para cada um.
Não considere vil conhecimento algum, porque todo
conhecimento é bom. Se tiver tempo livre, não recuse
ler algum escrito. Se você não lucra, também não perde nada,
sobretudo porque não há nenhum escrito, creio eu, que não
proponha algo agradável, se é tratado no lugar e no modo devido,
e não há nenhum escrito que não contenha algo especial.
Igualmente lhe convém que, quando começar a conhecer alguma
coisa, não despreze os outros. Este
vício da vaidade ocorre a alguns, porque olham com demasiada
diligência o seu próprio conhecimento e, parecendo-lhes
de ter-se tornado alguma coisa, pensam que os outros não são
como eles nem poderiam nunca sê-lo, sem conhecê-los. Por isso,
agora ferve o fato que alguns charlatães, gloriando-se
não sei de que, acusam professores mais velhos de ingenuidade,
achando que a Sabedoria nasceu com eles e morrerá com eles.
Não é meu conselho imitar esse tipo de pessoas.
O bom estudioso deve ser humilde e manso, afastado
totalmente das preocupações vãs. Fuja dos autores de
doutrinas perversas como do veneno, aprenda a refletir
longamente sobre alguma coisa antes de julgá-la, não
queira aparecer douto, mas sê-lo, ame os ensinamentos
aprendidos dos sábios e procure tê-los sempre diante dos olhos
como espelho do seu próprio rosto. – Hugo de São Vítor,
Didascálicon, Livro III, cap. 13 (os grifos são meus).
Creio que o
monge medieval esgotou a dúvida de qual a melhor atitude do
estudante e do “para que serve”. Ademais, devemos sempre fazer o
que gostamos, o que temos afinidade. Assim nosso trabalho torna-se
melhor e mais prazeroso, e o resultado é sempre melhor do que se
fizéssemos algo com o qual não tivéssemos nenhuma simpatia. Em minha
vida (quase) sempre trabalhei com o que gostava. E hoje acredito ter
conseguido algo com minha profissão porque amo o que faço.
V. A resposta
elevada, a intermediária e a chã
“Para ser um bom historiador, o que se precisa ter é, acima de tudo,
imaginação,
perspicácia e uma sensibilidade para descobrir questões relevantes e
os lugares certos
para encontrar respostas a elas.”
Peter Burke
(1937- )
Para
consolidar ainda melhor o que digo, vou me apoiar em um filósofo.
Para responder o “para que serve” a Filosofia,
Simon Blackburn (University
of Cambridge) justificou o estudo da Filosofia de forma
bastante correta, a meu ver, e que também serve para o caso da
História.
Para ele, há
três tipos de respostas para a pergunta “para que serve”: a elevada,
a intermediária e a chã. Sem o saber, minha resposta naquele evento
foi, na classificação de Blackburn,
a elevada. Para que entendam essa perspectiva, acho que a passagem
completa do texto do filósofo também merece ser citada na íntegra:
A resposta elevada
põe em questão a pergunta – uma estratégia filosófica típica,
pois implica subir um grau na ordem da reflexão. Que queremos
dizer quando perguntamos para que serve? A reflexão não coze o
pão, mas também a arquitetura não o faz, nem a música, a arte, a
história ou a literatura. Acontece apenas que queremos
compreender-nos. Queremos isto pelo seu valor intrínseco,
tal como os especialistas em ciências ou matemáticas puras podem
querer compreender o princípio do universo, ou a teoria dos
conjuntos, pelo seu valor intrínseco, ou como um músico pode
querer resolver alguns problemas na harmonia ou no contraponto
pelo seu valor intrínseco. São coisas que não se fazem em função
de aplicações práticas.
Grande parte da vida trata-se de fato de criar gado para poder
comprar mais terra, para poder criar mais gado, para poder
comprar mais terra… Os momentos em que nos libertamos
disso, seja para fazer matemática ou música, para ler Platão ou
Eça de Queirós, devem ser acarinhados. São
momentos em que desenvolvemos nossa saúde mental. E a
nossa saúde mental é boa em si, como a nossa saúde física. Além
disso, há no fim das contas uma recompensa em termos de prazer.
Quando temos saúde física, o exercício físico dá-nos prazer, e
quando temos saúde mental, o exercício mental dá-nos prazer.
Esta é uma resposta purista. Esta resposta não está
errada, mas tem um problema. Acontece que provavelmente
só consegue ser atraente para as pessoas que já estão
parcialmente convencidas – pessoas que não fizeram a
pergunta original num tom de voz muito agressivo. (BLACKBURN,
2000) (os grifos são meus).
Depois de
reler bastante esse trecho, entendi porque algumas pessoas que
tinham um tom de voz agressivo naquela noite (justamente os chatos
que estavam em crise) não entenderam – ou não quiseram entender – a
minha “resposta elevada”, como se refere o filósofo. Porque o “para
que serve” do questionador agressivo mostra que ele não está
convencido da escolha que fez, ou, pior, quer que sua escolha
“elevada” sirva para algo funcional, algo menos sublime
intelectualmente, algo “chã”. Pelo contrário, o estudo da história é
algo sublime, algo que sublima, penso eu – e daí a crise do(s)
chato(s).
Para que essa
distinção entre o historiador e os demais cientistas sociais possa
ficar mais bem delimitada, vou rapidamente comentar a divisão que
Michel Oakeshott
(1901-1990) fez entre “passado prático” e “passado histórico”. Em
seu livro Sobre a História, ele afirmou que o “passado
prático” (o da maioria das pessoas) acontece quando buscamos no
passado uma explicação para algo no presente: essa explicação
“serve” para alguma coisa. Por sua vez, o “passado histórico” (o
passado do historiador) acontece quando buscamos o passado pelo
passado, pelo desejo de saber, de conhecer, de entender, e é isso
que faz o historiador (OAKESHOTT, 2004).
VI. Conclusão:
o exercício de apreensão do passado histórico
é um ato
de amor e uma busca da Sabedoria
“É impossível não pensar em história em termos morais.
Nem, creio, devemos fazê-lo.”
John Lewis Gaddis
Concluo – e
acrescento: embora o conhecimento histórico tenha em sua origem o
prazer de descobrir que é resultado da curiosidade, se ele não tiver
como finalidade última que os homens se tornem pessoas
melhores em si e em suas relações com os outros homens, não serve
para outra coisa a não ser acirrar conflitos e aumentar a violência
de uns contra outros. Sabiamente diz
São Paulo (c. 3-66 d.C.) em sua Carta aos
Coríntios: “Ainda que eu falasse línguas, a dos homens e as dos
anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa,
ou como um címbalo que tine.” (1Cor 1, 13, 1)
Se a História
é apenas vista como instrumento político, como pensam vários colegas
citados acima, ela não pode servir para nada de bom. Trata-se, na
prática, de escolher entre duas revoluções: a externa e a interna,
entre querer transformar o mundo contra alguma “classe de
opressores”, ou querer transformá-lo pela via do amor (que é algo
bem mais difícil, reconheço).
Por exemplo,
os mesquinhos se servirão da História mesquinhamente, pois não
encontrarão nela o exemplo para mudar o que é preciso, mas como
prevalecer sobre outros seres humanos, para mudar os outros – e
geralmente esses que querem mudar os outros são quase sempre pessoas
intolerantes e que não gostam de escutar ninguém. Pior: se puderem,
eles calam os que pensam diferente – e quem está lendo agora esse
texto e já participou de alguma reunião política que tenha tido a
presença de algum radical revolucionário de botequim (ou o
“revolucionário de chopp”, como falávamos no Rio na década de 70)
sabe muito bem o que estou dizendo.
A própria
pergunta “Para que serve a História?” deixa, necessariamente,
implícita a resposta de que ela serve para cada um, na medida de sua
visão do mundo, dos valores que balizam os atos de cada homem e a
mentalidade de cada sociedade. Somente nesse aspecto, eu concordo
com o Professor André
Ricardo Pereira, embora não considere esse o melhor
proveito que podemos tirar do conhecimento histórico, muito pelo
contrário.
Por exemplo,
quando educamos nossos filhos, lhes contamos histórias com o intuito
de dar a eles algum exemplo ou noção de como agir corretamente. Do
certo e do errado. Essas histórias seriam a “parte material” da
educação, enquanto a “parte mental e espiritual” se daria no plano
dos valores, seria a “lição de moral” extraída dessas histórias. Com
a História deveria dar-se o mesmo, mas não é este o caso ou o quadro
predominante... Infelizmente!
Por isso,
finalizo delimitando o sentimento, ou, em outras palavras, a
postura metodológica que deve estar presente no (bom)
historiador quando de seu processo de reconstrução histórica: o
amor. Enfatizo: o exercício de apreensão do passado, do
passado que aconteceu, do passado registrado é como o próprio ato de
educar, é um ato de amor, amor na plena acepção da palavra,
um dar sem esperar nada em troca, um olhar para trás e desejar
apenas entender o que aconteceu, participando de uma perspectiva
comum com o texto estudado (GADAMER, 1998: 59).
Ao decidir
pela regressão temporal quando lê suas fontes, o
historiador não pode e não deve estar contaminado pela tentação de
possuí-las, de dominá-las, de alterá-las com suas palavras (ou mesmo
destruí-las), mas sim de entender aquele tempo que escolheu para
devanear (MATTOSO, 1988: 18).
Amar
o período estudado significa simplesmente não ter contra ele uma
atitude de suspeita, de malícia, de querer ver o que não está
escrito e subentender tudo o que está registrado com segundas
intenções. Henri-Irenée Marrou
(1904-1977) definiu muito bem qual deve ser a atitude do verdadeiro
historiador:
Ele (o historiador)
não deve adotar, em relação às testemunhas do passado,
essa atitude carrancuda, esmiuçadora e rabugenta,
que é a atitude do mau policial para quem toda
pessoa intimada a prestar depoimento é a priori
suspeita e tida como culpada até prova em contrário; tal
superexcitação do espírito crítico, em vez de ser uma
qualidade, seria para o historiador um vício radical, que o
tornaria praticamente incapaz de reconhecer o significado real,
o alcance, o valor dos documentos que estuda; uma
atitude desse tipo é tão perigosa em história como, na vida
cotidiana, o medo de ser iludido... (os grifos são
meus) (MARROU, 1978: 78-79)
Essa atitude
maquiavélica de suspeita, de desconfiança, cínica, muito presente
hoje nos círculos acadêmicos brasileiros que formam professores,
dificulta muito a compreensão daquilo que está sendo estudado, quase
inviabilizando entre nós a formação de bons historiadores.
Em
contrapartida, esse comportamento mental de amor que
proponho para o historiador deve ser um pouco como o ato de fé da
sabedoria religiosa: “A sabedoria que reside no núcleo das religiões
não se entrega ao olhar malicioso. É isto que Cristo quer dizer
quando pede que nos tornemos como crianças” (CARVALHO, 1997).
Esse esforço
histórico para o historiador “se tornar acessível e ir ao encontro
do outro” (MARROU, 1978: 71) é, em minha opinião, o autêntico
conhecimento histórico, que nada mais é do que aquela vontade de nos
enriquecermos, de sairmos de nós mesmos, como bem afirma o
historiador Raúl Cesar Gouveia Fernandes:
Sair de nós mesmos
significa estar disponíveis a ouvir com atenção o que os
documentos históricos têm a nos revelar, que é o contrário de
projetar sobre eles idéias ou teorias preestabelecidas. Com
efeito, a verdade pode nos enriquecer apenas se a procurarmos
livres de qualquer tipo de censura prévia (FERNANDES, 1999).
O historiador
deve ter uma relação de simpatia com suas “fontes” (MARROU,
1978: 79): para compreender o passado ele deve estabelecer uma
comunhão fraternal com seus textos. Mais: sem essa “sensibilidade
por simpatia”, a História não se realiza (GADAMER, 1998: 24)
Assim, para
nos tornarmos bons historiadores, precisamos de menos malícia e mais
amor, menos maldade e mais compreensão para que o estudo do “passado
histórico” de Oakeshott
se realize plenamente. É dessa forma que o historiador pode quebrar
os preconceitos que tem, os “pré-conceitos” que o fazem ser
anacrônico. “A quem sabe amar, essa experiência do outro, essa saída
de si mesmo permitirá superar qualquer desilusão” (MARROU, 1978:
79)
E prestem
muita atenção: quem ama e sempre amou a História não está, nem nunca
esteve em crise. De minha parte, eu nunca estive em crise por causa
dela, muito pelo contrário, ela sempre me causou um imenso prazer, o
verdadeiro prazer de conhecer.
*
Há quem busque o saber pelo
saber: é uma torpe curiosidade.
Há quem busque o saber para se exibir: é uma torpe vaidade.
Há quem busque o saber para vendê-lo: é um torpe tráfico.
Mas há quem busque o saber para edificar, e isto é caridade.
E há quem busque o saber para se edificar, e isto é prudência.
São Bernardo de Claraval,
Sobre o cantar dos cantares, Sermão 36, III.
Clio (1790). Liebighaus, Frankfurt.
Filha de Júpiter e Mnemósine, seu nome deriva da palavra grega
celebrar.
Ao cantar a glória dos guerreiros
e as conquistas de um povo,
Clio tornou-se a patrona da História. É representada sentada,
e ostenta como atributo a clepsidra
(emblema da ordem cronológica dos acontecimentos).
*
Bibliografia:
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Soviéticos. São Paulo: Ediouro, 2004.
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BLACKBURN, Simon. “Para
que serve a Filosofia?”
CARVALHO, Olavo de.
Entrevista
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